Vedas- O verbo da Criação

Filosofia

Por Lokasākṣī Dāsa (Dr. Lúcio Valera)

“No princípio era o Verbo e o verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (João 1:1-3).

A Bíblia nos fala de um som primordial, do Verbo, que dá origem ao mundo. Essa mesma narrativa, da criação pelo som, já estava presente nas escrituras védicas. O Śrīmad-Bhāgavatam, por exemplo, descreve minuciosamente esse processo, quando nos fala de uma forma sutil de som criativo, conhecido como nāda. Essa palavra vem da raiz verbal sânscrita nad (1P – nadati), que significa “soar, ressonar, rugir ou vibrar”.

Nāda significa som e indica a primeira vibração na Energia Espiritual, quando ela se expressa na criação do mundo material. A forma abreviada de nāda é chamada de bindu (gota). Nāda, a vibração sutil do som transcendental, apareceu primeiramente no éter do coração do demiurgo Brahmā. O primeiro ser criado diretamente de Deus. Ali encontramos que,

brahmaṇaḥ parameṣṭhinaḥ hṛdy ākāśād abhūn nādo

“A vibração sutil do som transcendental pareceu no éter do coração do sublime Senhor Brahmā” (Śrīmad-Bhāgavatam, 12.6.37).

A seguir, descreve-se que: tato’ bhūt tri-vṛd oṁkāro, “Daquela vibração sutil transcendental surgiu o oṁkāra composto de três sons” (Śrīmad-Bhāgavatam, 12.6.39). Esses três fonemas representam a Verdade Absoluta em todas as suas três fases: a Personalidade de Deus, a Alma Suprema e o Ser Absoluto.

yat tal liṅgaṁ bhagavato brahmaṇaḥ paramātmanaḥ

“É a representação da Verdade Absoluta em todas as Suas três fases: Bhagavān “a Personalidade Suprema”, Paramātman “a Alma Suprema” e Brahman “o Ser Supremo” (Śrīmad-Bhāgavatam, 12.6.39).

Essa sílaba transcendental, sendo uma das potências do Senhor Supremo, e, portanto, não diferente dEle, forneceu para Brahmā, o demiurgo, todas as sementes da manifestação material.

tato’ kṣara-samāmnāyam asṛjad bhagavān ajaḥ antasthoṣma-svara-sparśa-hrasva-dīrghādi-lakṣaṇam

“Desse [oṁkāra] o não nascido [Brahmā] criou todos os sons do alfabeto – vogais, consoantes, semivogais, sibilantes e outros – distintos por características tais como a medida longa e breve” (Śrīmad-Bhāgavatam, 12.6.43).

Por isso afirma-se que o alfabeto sânscrito surgiu do Senhor Nārāyaṇa, quando Ele primeiramente manifestou o conhecimento védico no coração de Brahmā. Śrīla Jīva Gosvāmī afirma que ele, nārāyaṇād udbhūto ’yaṁ varṇakramaḥ,” Surgiu de Nārāyaṇa em sua ordem alfabética” (Śrī Harināmāmṛta-Vyākaraṇa, Laghu, 1).

Consequentemente, valendo-se das sementes sonoras (bījas) na forma do alfabeto fonético sânscrito, Brahmā, tendo sido iniciado pelo Senhor Supremo no conhecimento védico, deu sequência à criação secundária (visarga).

Na sequência, iremos ver outro aspecto do som espiritual. Além da função do som védico no “processo criativo” (pravṛtti-marga), vamos falar de sua função no processo de solução definitiva do problema da existência material, que é por natureza duḥkhālayam aśaśvatam “plena de sofrimento e temporária”(Bhagava-gītā, 8.15), no que é conhecido como “processo de libertação” (nṛvṛtti-marga).

A teoria de que Brahman, a Realidade Última seria o som (śabda) ou palavra (vāc), a essência idealizada da linguagem, foi desenvolvida pelos filósofos da linguagem e dos pensadores da escola mīmāṁsa. Esse conceito de śabda-brahman teve grande influência nas cosmologias dos Āgamas ou Tantras.

Os vaiṣṇavas e seguidores do Pāñcarātras, por serem monoteístas, que acreditam na posição suprema da Personalidade da Divindade, como Paramātmā ou Bhagavān, não aceitam a teoria de que a realidade última seja um śabda-brahman impessoal. Contudo, eles relegam śabda-brahman a uma posição secundária, em suas cosmologias e cosmogonias, igualando-o a uma das potências (śaktis) da Divindade.

Mais precisamente, śabda-brahman, seria vāk “o verbo” identificado com jñāna ou saṁvit śakti “a potência de conhecimento” do Senhor Supremo. Essa potência (saṁvit śakti) e as potências de existência (sandhini śakti) e de bem-aventurança (hladhini śakti), constituem a potência pessoal interna (svarūpa ou antarāṅga śakti) da Divindade.

Śabda-brahman em sua natureza absoluta chama-se parā, ou parā-vāk. Sendo a dimensão mais sutil da realidade, é dele que se manifesta as outras três formas mais densas, ou menos sutil, de som.

“De acordo com o conhecimento védico, o som védico divide-se em quatro fases, que podem ser compreendidas apenas pelos brāhmaṇas mais inteligentes. Isto acontece porque três das divisões situam-se no interior da entidade viva e só a quarta divisão se manifesta externamente como a fala. Mesma essa quarta fase do som védico, chamada vaikharī, é muito difícil de compreender para os seres humanos comuns” (Prabhupada, Vol. 11.2, 1995, p. 409).

A criação e a origem do som

No início tudo era a escuridão do estado imanifesto e primordial da Natureza material, conhecido como prādhana. Sendo agitada pelo poderoso olhar do Senhor Viṣņu na forma da energia do tempo (kala-śakti), a Natureza material desperta e se manifesta em seu primeiro estágio de evolução, o mahat ou “o estado pleno da matéria”, que, gradualmente, em um processo evolutivo, transforma-se em ahaṁkāra “o ego”, manas “a mente”, buddhi “a inteligência”, tan-matras “a sutileza dos elementos”, pañca-bhūtas “os cinco elementos”, jñānendriyas “os sentidos de conhecimento” e karmendriyas “os sentidos da ação”.

Sendo manifestos, esses elementos se congregam e formam o karaṇa-sagara “oceano causal”, O Senhor, então, se manifesta como Nārāyaṇa, entra e repousa nesse oceano e dos poros de Seu corpo surgem sementes de infinitos universos. Expandindo- se novamente o Senhor entra e repousa no centro de cada um desses universos. Destarte, do umbigo de cada uma dessas expansões do Senhor brota uma flor de lótus que contêm em seu caule todos os sistemas planetários. No verticilo dessa flor de lótus nasce a primeira criatura, o Senhor Brahmā.

Estando perplexo sobre a sua origem, ele ouve subitamente duas sílabas vibrando ao seu redor: tapa (“pratique austeridade”). Assim iniciado pelo Senhor Supremo, o Senhor Brahmā, praticando severas penitência e meditação, ouve e recebe a inspiração do conhecimento védico, para cumprir com sua tarefa de dar sequência à criação secundária. Esse conhecimento se manifesta do som transcendental, a sílaba oṁ, de onde brota todos os sons do alfabeto fonético sânscrito.

De acordo com a fonética tradicional (śikṣā), o ser (ātmā) formula intenções por meio da inteligência (buddhi) e inspira a mente (manas) para falar. A mente impulsiona o fogo do corpo (kayāgni) que ativa o movimento da respiração (maruta) que movimentando o peito produz um zumbido (mandra) que por sua vez sobe até o palato e alto da cabeça onde repercute e desce até a boca para produzir os sons articulados como as vogais e consoantes.

Definição do som

Na tradição védica o som é considerado como um dos principais princípios da existência, sendo ao mesmo tempo a fonte da existência material e a chave para nos libertar dela. Quem pode compreender todas as dimensões ou estágios do som, como explicados na literatura védica, pode fazer uso dessa ciência para se libertar do cativeiro da matéria. Para que tenhamos uma compreensão dos quatro níveis do som, importante saber como o Śrīmad-Bhāgavatam define o som:

arthāśrayatvaṁ śabdasya draṣṭur liṅgatvam eva ca

tan-mātratvaṁ, ca nabhaso lakṣaṇaṁ kavayo viduḥ

“Pessoas que são eruditas e que têm conhecimento real definem o som como aquilo que transmite a ideia de um objeto, indica a presença de um orador oculto à nossa vista e constitui a forma sutil do éter” (Śrīmad-Bhāgavatam, 3.26.33).

Essa pode não ser uma definição absoluta do som, considerando que ele existe em vários níveis, mas no dá uma base segura para começar nosso estudo nesse tema. Essa definição do som, encontrada no Śrīmad-Bhāgavatam, tem uma perspectiva bem diferente da conhecida no Ocidente. Principalmente, porque ela define o som como algo que transmite a ideia de um objeto. Para isso utiliza-se a palavra artha-aśraya “abrigo de sentido”.

Segundo o conhecimento védico, as palavras (akṣaras) são sementes (bījas) da existência. O som audível é categorizado em 50 fonemas, constituídos de vogais e de vogais e consoantes, começando com “a” e terminando com “kṣa”. Esses fonemas do alfabeto silábico do sânscrito recebem o nome de akṣara “imperecível”.

Akṣara também é sinônimo da sílaba oṁ (oṁkāra), que é a soma de todas as sílabas e fonte dos hinos védicos. Isso é conformado na Bhagavad-gītā:

karma brahmodbhavaṁ viddhi brahmākṣara-samudbhavam

tasmāt sarva-gataṁ brahma nityaṁ yajñe pratiṣṭhitam

“Saiba que o dever se manifesta dos Vedas (brahma). Brahman origina-se do imperecível. Por isso, Brahman que está em toda parte, reside sempre no sacrifício” (Bhagavad-gītā, 3.15).

Os Tantras situam os akṣaras ou “fonemas” ao nível de sua fonte material, relacionando-os com uma das deidades ou aspectos específicos da Śakti divina. Cada um dos estágios de sua manifestação são fases da evolução do universo.

Dessa forma, akṣaras são sons potenciais, continuamente conectados aos objetos como os sons (śabda) e seus sentidos (artha). Com isso temos uma distinção entre o som e o ruído. O ruído, que se distingue do som, não é arthāśraya ou “abrigo de sentido”.

Karma, ou dever prescrito, se manifestou dos Vedas; aqui indicado pela palavra brahma. Essa manifestação não é exatamente direta. Há dois tipos de manifestações, uma espiritual e uma outra, material. Isso se indica pela palavra udbhavam “manifestação”. Os Vedas são uma manifestação direta do prāṇava oṁ-kāra. Por isso, em relação a esta manifestação, utiliza-se a palavra samud-bhavam “origem” e não apenas ud-bhavam “manifestação”.

Śrī Baladeva Vidyābhūṣaṇa, comentando sobre o aforismo śabda iti cen nātaḥ prabhāvāt pratyakṣānumānābhyām, do Vedānta-sūtra (1.3.28), afirma que a criação dos corpos materiais (de todas as entidades vivas do universo) a partir do som é feita (pelo Senhor Brahmā) pela recordação das formas eternas e arquetípicas presente nas afirmações dos Vedas. Essas formas arquetípicas são as ideias, que, sendo eternas, preexistem a manifestação de qualquer um dos objetos materiais e corpos das entidades vivas. Essa é potência do som e a relação entre ele e seu sentido.

Outro aspecto singular da definição de som do Śrīmad-Bhāgavatam é a definição de som como “aquilo que indica a presença de um orador”. Consequentemente, o som tem de ser um produto da consciência. Nesse sentido, os textos védicos denominam o som como vāk ou “fala”, ou seja, a fala de alguém.

O tantra aceita a teoria dos mīmāṁsakas sobre a eternidade do som (śabda) e o do sentido (artha) e consideram que śabda e artha são personificações de Śiva e Śakti como o próprio universo. Eles chamam a fonte original de śabdārtha-brahman, em vez de meramente śabda-brahmani. Pois essa é a fonte tanto dos objetos como de suas descrições. Palavras e seu sentido – se referindo ao mundo objetivo – são as várias manifestações da Śakti.

Considerando o som como sendo da natureza dos varṇas (sílabas) que o compõe, o tantra afirma que a força criativa do universo reside em todas as letras do alfabeto. As diferentes letras simbolizam as diferentes funções dessa força criativa, e sua totalidade é denominada matrikā “a mãe em essência”.

Dessa forma, o tantra vê os mantras não meramente como uma combinação caprichosa de sons, mas como a forma sutil das deidades diretoras. Sendo que o verdadeiro propósito da meditação com mantras seria o de se comunicar com a deidade de cada mantra em particular.

O som que liberta

Portanto, vāk não é uma manifestação da energia material, pois afirma-se no Vedānta-sūtra: tat-pūrvakatvād vācaḥ “Antes da criação, já havia a fala” (Vedānta-sūtra 2.4.4).

Isso indica que vāk já existia antes de prādhana. Prādhana é a raiz da manifestação material, quando não estão manifestos os três guṇas “qualidade ou modos da natureza material” por estarem em uma condição absoluta de equilíbrio. Anterior a essa situação já havia vāk que, portanto, não é um produto da matéria.

Por esse motivo, encontramos no Vedānta-sūtra a seguinte afirmação: anāvṛttiḥ śabdāt, “A libertação é pelo som” (Vedānta-sūtra, 4.4.22). Porque o som espiritual é a fonte não material da manifestação cósmica, ele é a chave pela qual podemos nos libertar do cativeiro material., pois é o elo entre as dimensões material e espiritual.

Esses conceitos também são apresentados detalhadamente em escrituras como: Naḍa-bindu Upaniṣad, Praśna Upaniṣad, Mundaka Upaniṣad, Mandukya Upaniṣad, Maitri Upaniṣad e Kaṭha Upaniṣad, bem como no Vakyapadadiya de Bhartrihari, onde também encontramos os conceitos de śabda, vāk, matrikas, hiranyagarbha, quatro estados de consciência etc.

Além de que pode ser encontrado no Śrīmad-Bhāgavatam, nas Upaniṣads, os Āgamas (Tantras) trazem mais discussões sobre esses temas.

Créditos Imagem: Acervo do Autor

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