por Lokasākṣī Dāsa ACBSP (Dr. Lúcio Valera)
Segundo Jessica Frazier, “antes de um dogmatismo ingênuo ou de uma espiritualidade inquestionável, a filosofia bhakti de Rūpa Gosvāmī incorporou os frutos do ‘ceticismo iluminado’ da Índia a uma visão de mundo realista que se fortaleceu daqueles mesmos fatores que exerceram influência desmoralizante nas crenças religiosas e realismos do Ocidente” (Frazier 2009, p. 159).
Ademais, no contexto apologético de Śrī Caitanya Mahāprabhu e seus seguidores, as obras de Rūpa Gosvāmī se desenvolveu como uma ontologia que “incorpora o monismo advaitico, o dualismo teísta, e as metafísicas do Vedānta e do Sāṁkhya, filtrando-os com a lógica do Nyāya, e testando-os com os insights da teoria estética sânscrita” (Frazier 2009, p. 159).
Para entender a ontologia de bhakti-rasa, desenvolvida pelo Vaiṣṇavismo Gauḍīya, faz-se mister primeiramente situá-la no contexto das escolas de pensamento tradicionais do Hinduísmo. Nos sistemas filosóficos do Hinduísmo, conhecido como os ṣaḍ-dārśaṇas, existem basicamente dois sistemas de hermenêutica: Mīmāṁsa e Vedānta.
O Mīmāṁsa procura interpretar como os rituais e o karma, ou as ações, constituem uma dimensão significativa da realidade, conducente à aquisição de uma condição existencial paradisíaca. A hermenêutica do Vedānta, por outro lado, aponta para os limites da ação fruitiva que visa à aquisição do paraíso e sustenta que a verdadeira resolução do problema existencial, enquanto soteriologia, depende da eliminação da ignorância da natureza última do sujeito/agente e sua relação com o Absoluto.
Para o Vedānta, a perfeição da existência humana é obter conhecimento do Real ou Absoluto, que é o Ser que tudo permeia e que em sânscrito recebe o nome de Brahman. Essa é a exortação inquisitória proposta pelo Vedānta-sūtra, um dos textos fundamentais que resume o conhecimento das Upaniṣads: athato brahma jijñasa, “Agora, então, indague-se sobre Brahman” (Vedānta-sūtra, 1.1.1).
A palavra brahman, ‘o grande’, vêm da raiz verbal bṛh ‘expandir’ e designa aquilo ou aquele que se expande mais que qualquer outra coisa. O Brahman das Upaniṣads trata-se da versão em gênero neutro dessa palavra e designa o Ser que se ‘expande’ infinitamente, isto é, o Absoluto ou essência ontológica de todos os entes[1]. Trata-se da realidade metafísica final que é o ekam evādvitīyam, “um sem um segundo” (Chāndogya Upaniṣad, 6.2.1), a Realidade última, a fonte original e o fundamento do universo.
O Bhāgavata Purāṇa, um dos principais Purāṇas, considerado pela tradição de Caitanya Mahāprabhu como o comentário de Vyāsa[2] aos Vedānta-sūtras, ratifica em seu preambulo a instrução fundante do Vedānta-sūtra sobre Brahman (Prabhupāda 1995, p. 60).
Portanto, a afirmação que abre o Bhāgavata Purāṇa é a mesma que se encontra nos aforismos iniciais do Vedānta-sūtra: janmādy asya yataḥ, “Deste (Brahman) há a origem, etc.” (Vedānta-sūtra, 1.1.2; Bhāgavata Purāṇa, 1.1.1). Ou seja, esse Brahman é a realidade de onde tudo surge, onde tudo permanece e para onde tudo retorna.
Após afirmar a natureza do Brahman como a fonte e origem de todas as coisas, o Vedānta-sūtra declara que ele não pode ser conhecido pela razão, mas somente pela autoridade das escrituras, da revelação: śāstra yonitvāt “[O conhecimento de Brahman] tem origem nas escrituras” (Vedānta-sūtra, 1.1.3).
Certamente, aceitar a autoridade das escrituras (śāstras) não é meramente aceitar o conhecimento de qualquer autoridade, mas, aceita-lo da autoridade dos que são videntes, ou seja, daqueles que, com sua visão intuitiva, com sua visão mística, em samādhi[3], tiveram experiência do Real.
De forma geral, em suas diferentes escolas interpretativas, o Vedānta pressupõe dois paradigmas ontológicos bem distintos[4]. Um deles lembra Parmênides (530 – 460 a.C.) e o outro que lembra Platão (428/427 – 348/347 a.C.). Grosso modo, a diferença entre as ontologias de Parmênides e Platão estaria no fato de que Parmênides afirma que o mundo sensível das aparências, que seria para ele o ‘não ser’, não existe, não tem realidade, ao passo que para Platão ele existe, mas apenas como sombra do ‘ser verdadeiro’.
Essa mesma distinção ontológica poderia ser encontrada respectivamente entre o idealismo do vedānta advaita de Śaṅkara e o realismo das tradições vedānta vaiṣṇavas de Rāmānuja, Madhva, Nimbārka, Vallabha e Caitanya Mahāprabhu.
O realismo das tradições vedānta vaiṣṇavas ao invés da postulação do idealismo do vedānta advaita de que Brahman constitui um absoluto sem atributos ou poderes, inativo e impessoal, considera o mesmo Brahman como um absoluto dotado de atributos supramundanos, de poderes inconcebíveis, com atividades sobrenaturais e uma personalidade divina. Isso é explicado nas Upaniṣads:
parāsya śaktir vividhaiva śruyate, svābhāvikī,
“Sabe-se que [essa] śakti é suprema, múltipla, e parte de sua própria natureza” (Śvetāśvatara Upaniṣad, 6.8.).
Se o primeiro tende a atribuir ao mundo uma realidade próxima à ilusória, o segundo, isto é, o vedānta vaiṣṇavas, o enxerga como uma manifestação da soberania divina (aiśvarya).
Consequentemente, uma vez que Brahman é infinito e todo-perfeito, não se pode atribuir limites aos seus poderes, atributos, atividades e personalidade.
Para dar conta dessa dimensão meta-impessoal de Brahman, o Bhāgavata Purāṇa sustenta uma tripartição do Absoluto, fundamental para toda a tradição vedānta vaiṣṇava. Como afirma o texto:
vadanti tat tattva-vidas tattvaṁ yaj jñānam advayam, brahmeti paramātmeti bhagavān iti śabdyate,
“Os videntes conhecedores da Verdade não-dual e plena de conhecimento, descrevem-na como Brahman, o ‘Ser Absoluto’, Paramātmā, a ‘Alma Suprema’, e Bhagavān, a ‘Pessoa Todo-opulenta’” (Bhāgavata Purāṇa, 1.2.11).
Portanto, esses três aspectos da Divindade suprema são: Brahman, Paramātmā e Bhagavān. Brahman (usado aqui em sentido estrito) refere-se ao seu aspecto impessoal; Paramātmā, ao seu aspecto localizado todo-penetrante; e Bhagavān, à sua personalidade divina todo-opulenta.
São três os atributos que constituem, caracterizam e manifestam esses três aspectos da Divindade: sat, existência ou eternidade, é o atributo específico de Brahman; cit, consciência ou conhecimento é o atributo específico de Paramātmā; e ānanda, bem-aventurança, ou prazer infinito, o atributo que caracteriza Bhagavān. Isso é descrito no Brahmā Saṁhitā: īśvaraḥ paramaḥ kṛṣṇaḥ sac-cid-ānanda-vigrahaḥ (Brahmā Saṁhitā, 5.1).
Comentando sobre esse verso do Bhāgavata Purāṇa, Rembert Lutjeharms, rotula de “monoteísmo polimorfo”[5] essa disposição da Divindade de se manifestar numa pluralidade de formas (Lutjeharms, 2014, p. 175).
O Bhāgavata Purāṇa explica essa pluralidade como: yathāvidāsinaḥ kulyāḥ sarasaḥ syuḥ sahasraśaḥ “como milhares de rios fluindo de um lago” (Bhāgavata Purāṇa, 1.3.26). Ainda, segundo Lutjeharms:
“Ele é o Brahman, o fundamento de todos os seres, e interage com sua criação como o controlador interno, o ‘si mesmo’ Supremo (Paramātmā). Ele é Bhagavān, a deidade pessoal divinamente corporificada, e assumes várias formas segundo sua vontade. Tudo isso é descrito de forma elaborada nos escritos teológicos da tradição e seus textos sagrados. Esses textos, por nos transmitir a conclusão de sua doutrina (siddhānta), são a fonte primária de conhecimento (pramāṇa) sobre a natureza da Deus” (Lutjeharms, 2014, p. 175-176).
Os elementos gerais do Vedānta vaiṣṇava acima apresentados constituem o pano de fundo para o desenvolvimento da escola Vedānta Acintya-bhedābhedha[6] ‘inconcebível diferença e igualdade simultânea’, mais conhecida como Vaiṣṇavismo Gauḍīya e sua ontologia das emoções devocionais.
Nessa perspectiva, a interpretação vaiṣṇava gauḍīya do verso acima mencionado do Bhāgavata Purāṇa (1.2.11), tende a estabelecer uma hierarquia entre os diferentes aspectos da Divindade.
Por isso, Prabhupāda explica, em relação a Bhagavān, que “Brahman é Sua refulgência corpórea transcendental, e Paramātmā é Sua representação parcial. Assim, as compreensões Brahman e Paramātmā da Verdade absoluta são apenas compreensões parciais” (Prabhupāda, 1995, Vol.1.1, p. 115). Bhagavān emerge como o ponto de convergência de todos os atributos (sac-cid-ānanda) e teleologia final da existência a ser realizado através da prática de bhakti, ‘a devoção amorosa’.
Segundo Prabhupāda, a Divindade no seu aspecto Brahman deverá ser realizada através de jñāna ou conhecimento discriminativo; no seu aspecto Paramātmā através de dhyāna ou contemplação; e finalmente no seu aspecto de Bhagavān através de bhakti.
Consequentemente, o Bhāgavata Purāṇa estabelece que a Divindade ou Realidade não-dual é simultaneamente:
(1) o Ser, Brahman, para os que o realizaram através de jñāna, o conhecimento discriminativo;
(2) a Superalma, Paramātmā, para os que o realizaram através de dhyāna, a contemplação; e
(3) a Pessoa Suprema, Bhagavān, para os que o realizaram por bhakti, a devoção amorosa (Bhāgavata Purāṇa, 1.2.11).
A noção fundamental de acintya-bhedabheda aponta para uma unidade na diferença e simultaneamente uma diferença na unidade.
Mais especificamente ela aponta para um grau de articulação e relação entre a Divindade e as almas individuais, enquanto realidades distintas e reais, sob o pano de fundo de uma ontologia não dualista. O paradoxo da conjunção entre unidade e diferença é justamente o que caracteriza a dimensão acintya do Vaiṣṇavismo Gauḍīya.
Portanto, para o vaiṣṇava gauḍīya o mundo e as almas são reais, no sentido de serem eternos, assim como Deus o é. Mas sua existência é relativa e depende da existência de Deus.
Esse ponto é característico do pensamento dos Āgamas, onde se afirma que Deus e suas śaktis são todos reais. Isso é igualmente corroborado pelas Upaniṣads, em especial na passagem seguinte:
parasya śaktir vividhaiva śruyate, svabhāvikī jñāna-bala-kriyā ca,
“A potência transcendental [do Senhor] é múltipla, tendo a natureza inerente de conhecimento, poder e atividades” (Śvetāśvatara Upaniṣad, 6.8.).
Em outras palavras, a realidade das energias divinas – que abrange as almas e o mundo – não é apenas fenomenológica, mas também ontologicamente real. Por outro lado, a característica de acintya, que permeia essa relação entre a Divindade e suas energias, garante, por um lado a dimensão ontológica da não dualidade, e simultaneamente a consistência real da diversidade, que promove a alteridade e mantém a possibilidade psicológica e estética dos relacionamentos.
Contudo, é importante saber distinguir a identidade profunda da alma – que é condição sine qua non para a experiência mística (bhakti-rasa) com a Divindade, fundada nas emoções devocionais – da identidade ordinária da alma, a saber, o ego (ahaṁkāra). A primeira é eterna enquanto que a segunda é perecível.
Na ontologia vaiṣṇava gauḍīya, o mundo material é um reflexo invertido do mundo espiritual. Por exemplo, a Bhagavad-gītā refere à existência de uma árvore, a figueira-de-bengala, que se reflete num espelho de água, onde tudo aparece de forma invertida: ūrdhva-mūlam adhaḥ-śākham aśvatthaṁ prāhur avyayam, “As raízes para cima, os ramos para baixo, se diz, é a árvore aśvattha imperecível” (Bhagavad-gītā, 15.1).
Essa colocação nos mostra que todos os sentimentos, todas as emoções encontradas no plano material, onde se definem as relações mutuas entre seres relativos, são reflexos das relações existentes desses mesmos seres relativos com a Divindade ou Ser absoluto, no plano espiritual. Nesse arcabouço metafísico, os Purāṇas estabelecem a existência de um mundo espiritual, identificado com Vaikuṇṭha ou Vraja, que constituem a dimensão ou mundo de Deus, real, eterno e arquetípico.
Essa ontologia já se vislumbra no Ṛg-veda que descreve o plano material como sendo apenas um quarto da realidade (eka-pada-vibhuti) e o mundo espiritual de três-quartos (tri-pada-vibhūti):
etāvān asya mahimāto jyāyāṃś ca pūruṣaḥ, pādo ‘sya viśvā bhūtāni tripād asyāmṛtaṃ divi,
“Essa é a manifestação de Seu poder, mas o próprio Senhor é muito maior que isso. Todas as entidades vivas do universo são somente um quarto de seu ser, outros três quartos constituem a sua natureza eterna no Céu espiritual” (Ṛg Veda, 10.90.3).
Essa ontologia realista se distingue das ontologias idealistas tanto do não-dualismo indiferenciado (nirviśeṣa) como do niilismo budista (śunya-vāda), que identificam a causa do sofrimento unicamente na ignorância e no desejo, respectivamente.
O problema fundamental da existência material condicionada situa-se assim no ego (ahaṁkāra ou asmitā), que constitui reflexo pervertido e temporário da identidade espiritual da alma (jīvātma-svarūpa).
Nessa perversão, o ego se imagina enquanto centro das relações existenciais. Segundo essa perspectiva, o problemático não seria as emoções ou os desejos em si, mas sim o seu objeto. Quando o objeto do desejo é temporário, temos o sofrimento. Mas quando ele é eterno, temos outra situação, onde o problema do sofrimento não se apresenta dessa forma. Por isso, Lutjeharms nos explica que:
“Apesar da razão e teologia terem seu lugar e serem indispensáveis para os aspirantes espirituais, elas têm de dar espaço para a experiência e emoções. A teologia de Rūpa, embora estritamente sistemática e vigorosamente analítica, tenta fornecer um esquema teórico para uma meta bem subjetiva e experimental. Sua principal preocupação é a devoção (bhakti), e ele analisa detalhadamente as dinâmicas de suas emoções, que ele toma emprestado das teorias estéticas sânscritas. Mas, para Rūpa, e de fato para a tradição de Caitanya, a devoção é algo mais que uma emoção. Ela é uma condição de ser que se traduz em ação, e conduz a um estado de absorção divina único no qual Deus pode ser plenamente conhecido” (Lutjeharms, 2014, p. 175).
Foi nesse contexto da natureza ontológica das emoções que Rūpa Gosvāmī formulou sua teoria de rasa[7]. Para ele, o rasa que se expressa como experiência estética na dimensão material da vida e da arte – tal como formulado por Bharata – constitui um reflexo fugaz do rasa fundante e constitutivo da existência que é inerente à relação entre a alma e a Divindade na dimensão espiritual, e que transcorre na forma de uma emoção devocional (bhakti-rasa).
Dessa forma, Rūpa Gosvāmī nos dá a conhecer que a ‘verdade’, o objeto da ontologia, é o mesmo que a ‘beleza’, o objeto da estética, demonstrando que, na espiritualidade, as emoções da alma individual, em sua relação com a Divindade, não se fundem na passividade de uma contemplação ontológica, mas se expande na plenitude da bem-aventurança dinâmica das interações estético-emocionais do rasa arquetípico. Nessa vivencia emocional, define-se bhakti-rasa, como:
hṛṣīkeṇa hṛṣīkeṣa-sevanaṁ bhaktir ucyate,
“Utilizar os sentidos no serviço de Hṛṣīkeśa [Kṛṣṇa], o Senhor dos sentidos” (Bhakti-rasāmṛta-sindhu, 1.1.12).
A ênfase em uma ontologia das emoções (bhakti-rasa) como uma exploração das implicações ontológicas dos princípios da estética indiana e sua noção de rasa garante a peculiaridade da tradição do Vaiṣṇavismo Gauḍīya de Caitanya Mahāprabhu no contexto das demais escolas do Vedānta vaiṣṇava.
Com efeito, há nele algo de absolutamente singular no que tange à natureza ontológica da Divindade: a eficácia do emocionalismo devocional que implica uma concepção de uma Divindade, enquanto expressão da doçura, intimidade e amor, que pode ser ‘degustada’ em toda sua doçura (madhura).
Como afirma Cakravartī, “O que é singular quanto ao conceito de Brahman nesse sistema é a distinção que ele faz entre os atributos que expressam sua majestade (aiśvarya) e os que expressam sua doçura (mādhurya), tendo em vista dar mais ênfase no último”. Essa doçura, ainda segundo Cakravartī, é revelada nos passatempos de Kṛṣṇa “com seus companheiros, afetuosos pais e queridas consortes, das quais Rādhā é a principal” (Chakravarti, 2004, p. 40).
No contexto da teoria de rasa, os “doces relacionamentos” (mādhurya-rasa) de Kṛṣṇa vieram a se constituir no “traço mais consistente do Vaiṣṇavismo”, em seu aspecto religioso. A Taittirīya Upaniṣad, referindo-se ao Brahman, afirma que é Ele em verdade rasa (bem-aventurança) e que a alma individual se torna plena de bem-aventurança (ānanda) por realiza-lo como rasa:
raso vai saḥ, rasaṁ hyevāyaṁ labdhvā ānandī bhavati,
“Ele certamente é doçura! Com essa doçura, temos a bem-aventurança. Quem, de fato, poderia respirar, sem bem-aventurança no espaço do ser? Ele, unicamente Ele, causa bem-aventurança” (Taittirīya Upaniṣad, 2.6.1).
Ainda que seja aludida nas Upaniṣads, a condição de rasa de Brahman não foi revelada plenamente pelos mais antigos comentadores das Upaniṣads. Os defensores da escola gauḍīya do Vaiṣṇavismo foram pioneiros em declarar o texto acima como a ideia básica da concepção upanixádica do Absoluto. O Absoluto é nikhila rasāmṛta-mūrti, a corporificação eterna de todos os rasas (Cakravarti, 2004, p. 342).
Notas:
* Texto adaptado de: “A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): Um estudo do Bhakti-rasāmṛta-sindhu de Rūpa Gosvāmī” / Lucio Valera. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, 2015.
[1] É importante notar que o radical brahma além do substantivo neutro acima discutido admite também um sentido masculino cujo nominativo é brahmā e cujo sentido se refere a Brahmā, a divindade cosmológica de primeiro escalão que se ‘expande’ até os limites de nosso universo particular. Ele seria como que o ‘demiurgo’ ou ‘logos’, o primeiro ser criado, que surge de Nārāyaṇa e dá forma ao universo. O conceito de um demiurgo também pode ser encontrado no pensamento cosmogônico de Platão, onde designa o artesão divino que, sem criar de fato o universo, dá forma a uma matéria desorganizada imitando as essências eternas. Assim como em Plotino e Paulo, o demiurgo se identifica com o nous grego e o ‘Verbo’ cristão, Brahmā também atua com a śakti (potência) divina, que são os Vedas personificados, aquele conhecimento que possibilita a criação.
[2] A tradição vaiṣṇava identifica Bādarāyaṇa, o autor presumido do Vedānta-sūtra, com Vyāsa, indicando, portanto, que o Bhāgavata Purāṇa e o Vedānta-sūtra tem o mesmo autor.
[3] Samādhi é o estado de absorção mística obtida pela contemplação ou meditação contínua, que pode levar à identificação ontológica entre o meditador com seu objeto.
[4] Podemos fazer uma correlação desses dois paradigmas com as místicas do Cristianismo, que se baseiam em duas teologias distintas: a negativa e a afirmativa. A teologia ‘negativa’ ou apofática, encontrada principalmente em Dionísio Aeropagita (século V e VI d.C.) e Maister Ekhart (1260-1328 d.C.), tenta descrever Deus pela negação, baseando-se no princípio de que nada poderia ser dito sobre o ser perfeito que é Deus. Seria uma tentativa de alcançar unidade com o Divino através do discernimento, ganhando conhecimento do que Deus não é (apophasis), em vez de descrever o que Deus é. Por sua vez, a teologia ‘afirmativa’ ou catafática, que pode ser encontrada em São Boaventura (1221-1274 d.C.) e de alguma forma em Inácio de Loyola (1491-1556 d.C.), conduz ao conhecimento de Deus pela valorização das emoções que podem ser dirigidas à Divindade.
[5] Termo utilizado por Julius Lipner (Lipner, 2010, p. 312).
[6] Segundo Gupta, nos primeiros escritos do Vaiṣṇavismo Gauḍīya não encontramos o uso da expressão acintya-bhedābheda, apesar de encontrarmos o uso de palavras acintya e bhedābheda. Jīva Gosvāmī o primeiro a utilizá-la como identificando a filosofia de Caitanya Mahāprabhu. “No Sarva-saṁvādinī, onde ele [Jīva Gosvāmī] enumera os nomes dos diferentes mestres e suas escolas, ele conclui dizendo: ‘minha teoria é acintya-bhedābheda’” (Gupta 2007, p. 46, n. 30).
[7] No Cristianismo, esta preocupação com o uso místico das emoções também foi identificada por Hans Urs von Balthasar, que encontra um Inácio de Loyola, em seus Exercícios Espirituais, advogando “utilizar os sentidos” nas preces mentais. Também em uma de suas mais importantes obras, Herrlichkeit, Balthasar busca reafirmar o sentido religioso da sensação e imaginação. Ele afirma que o catolicismo tradicionalmente tem menosprezado essas duas faculdades como meio de revelação divina por ter superestimado a espiritualidade apofática (Balthasar, 1996, p. 227).
Bibliografia:
BALTHASAR, Hans Urs von. The Glory of the Lord: A Theological Aesthetics. In: FESSIO, J.; RICHES, J. Seeing the Form. San Francisco: Ignatious Press, 1982.
CHAKRAVARTI, Sudhindra Chandra. Philosophical Foundation of Bengal Vaisnavism, a Critical Exposition. New Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd., 2004.
FRAZIER, Jessica. Reality, Religion, and Passion: Indian and Western Approaches in Hans-Georg Gadamer and Rūpa Gosvāmi. Lanham: Lexington Books, 2009.
GUPTA, Ravi M. The Caitanya Vaisnava Vedānta of Jīva Gosvāmī: When knowledge meets devotion. London: Routledge Hindu Studies Series, 2007.
LIPNER, Julius, Hindus: Their Religious Belief and Practices. Abingdon: Routledge, 2010.
LUTJEHARMS, Rembert. “Aesthetics – An Ocean of Emotion: Rasa and Religious Experience in Early Caitanya Vaiṣṇava Thought” in Caitanya Vaiṣṇava Philosophy: Tradition, reason and Devotion. Surrey: Ashgate Publishing Limited, 2014, p. 175-215.
PRABHUPĀDA, A.C. Bhaktivedanta Swami. (trad.) Śrīmad Bhāgavatam. 19 Volumes, São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1995.
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