O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO VAIṢṆAVISMO GAUḌĪYA

Filosofia

por Dr. Lúcio Valera (Lokasākṣi Dāsa ACBSP)

O presente texto irá discorrer sobre o contexto histórico, religioso e cultural da Índia em que surgiu o movimento da Consciência de Kṛṣṇa de Śrī Caitanya Mahāprabhu nos séculos XV e XVI.

Segundo Lahiri, depois do movimento budista[1], o movimento de Śrī Caitanya Mahāprabhu, que ficou conhecido como Vaiṣṇavismo Gauḍīya, foi o movimento sócio religioso subsequente a exercer uma influência forte na vida sociocultural e religiosa de toda a Índia oriental.

Desde a conquista muçulmana de Navadvīpa por Bakhtiyar Uddin Khilji, no início do século XIII, por trezentos longos anos, a região da Bengala esteve sob o regime muçulmano. O movimento de Śrī Caitanya Mahāprabhu constituiu uma pausa na influência muçulmana sempre crescente na Índia oriental, em especial na Bengala. Assim, poder-se-ia afirmar que os séculos XVI e XVII constituem a era do movimento de Śrī Caitanya Mahāprabhu.

A importância desse movimento deve-se ao fato de ele ter se apresentado não apenas como um movimento religioso, mas também, em grande escala, como uma revolução sociocultural que beneficiou o povo pobre, inculto e de casta baixa da Bengala (Lahiri, 1993, p.1). Segundo Lahiri:

“Caitanya de uma forma bem-sucedida exerceu o papel de um líder sócio religioso popular de acordo com a necessidade da época. Não somente os vaishnavas, mas centenas e milhares de hindus negligenciados e desamparados de diferentes seitas religiosas se juntaram ao campo religioso de Caitanya. Ele foi um movimento de massa muito bem-sucedido tanto contra a crueldade dos yavanas[2] como contra a ortodoxia brâmane estabelecida. Praticamente toda a cidade de Navadvīpa, com exceção dos śāktas[3], se juntou no histórico sankīrtana nagar[4] contra a ordem do Kazi. No início do movimento, ele foi primeiramente o líder da humanidade sofredora, então, tornou-se o líder de um pequeno grupo de vaiṣṇavas em Navadvīpa. Diferentemente do Renascimento na Bengala do século XIX, que foi para alguns poucos líderes cultos da sociedade, o movimento de Caitanya foi para toda a população da Bengala. Ele iniciou um novo capítulo para a história da Bengala e Índia oriental. Esse movimento deu liberdade sócio religiosa para os não brâmanes do jugo da ortodoxia brâmane. Ele se baseava nos princípios de igualdade, fraternidade universal e devoção pura a Deus. Porque era uma religião liberal, ele também parou a conversão em massa ao Islamismo. Os hindus e budistas de classe baixa e degenerados tomaram abrigo dentro do redil do Caitanyaismo” (Lahiri, 1993, p.1).

Foi no contexto histórico da influência do islamismo conquistador bem como do Hinduísmo brâmane tradicional que o movimento de Śrī Caitanya Mahāprabhu surgiu como um dos fatores determinantes para o renascimento da tradição bhakti na Bengala e na Índia.

Quanto à influência islâmica, sabemos que, desde o início do século XIII, todo o norte do subcontinente asiático meridional esteve sob o domínio islâmico. O norte da Índia foi invadido por Mohammad Ghuri, do Afeganistão, que, com a intenção de estabelecer seu reinado, derrotou os rajaputros[5] liderados por Pṛthivīrāj, na segunda batalha de Tarain em 1192, e tomou posse do reino de Deli. Em 1202, seu general turco, Muhammad Bakhtyar Khilji, derrotou Lakṣmaṇasena da Bengala, e a maior parte da Índia setentrional tornou-se uma nova entidade política – o Sultanato de Déli. Os muçulmanos governaram o norte da Índia até seu controle ser usurpado pelos britânicos no século XVIII (Haberman, 1988, p. 40).

O século XVI teve início com Sikandar Lodī no controle da região adjacente a Déli. A região de Vṛndāvana, situada a oitenta milhas ao sul de Déli, nas margens ocidentais do rio Yamunā, e a área vizinha conhecida como Vraja também esteve sob seu domínio. Esse governo foi uma continuação do Império Lodī, que durou até que Babūr (1483-1530), o fundador e primeiro governante do Império Mogol[6], vindo pelo Afeganistão, invadiu a Índia. Em um ano, Babūr derrotou Ibrāhīm Lodī, o filho de Sikandar e então regente de Déli, na batalha de Panipath em 1526, e se estabeleceu como o primeiro imperador mogol. Culturalmente, Babūr foi bastante influenciado pela cultura persa, e isso influenciou as suas ações e as de seus sucessores, gerando uma expansão significativa do ethos persa no subcontinente indiano, com brilhantes contribuições literárias, artísticas e historiográficas (Lehmann 1988, online).

Babūr foi sucedido por ser filho Humāyūn, em 1530, mas este logo foi deposto por Sher Shah Suri, da dinastia turco-afegã, que retomou o poder a partir do Sul de Bihar. Sher Shah, dando grande estabilidade para a região situada entre Déli e Agra, construiu uma estrada protegida para ligar essas cidades imperiais. Contudo, logo depois, ele foi derrotado por Humāyūn, que retomou o controle de Déli em 1555. Após sua morte, em 1556, Humāyūn foi sucedido por seu filho mais velho, Akbar. Na medida em que os afegãos e os seus novos rivais, os mogóis, envolveram-se em luta por poder, cada um deles buscou estabelecer alianças políticas com os reis hindus do Rajastão. Akbar, em particular, forjou alianças fortes com reis hindus e empregou funcionários hindus de alto escalão em sua corte como uma forma de obter estabilidade política. O resultado foi um ambiente cada vez mais conducente ao desenvolvimento cultural hindu no coração do império muçulmano (Haberman, 2003, p. xxxiii-xxxiv).

No período entre 1494 e 1519 a Bengala foi governada, a partir de sua capital Gauḍa[7], por Alā-ud-dīn Husain Shāh e posteriormente por seu filho Nusrat Shah, até que o segundo soberano mogol, Humāyūn, assumisse o controle dessa cidade em 1538. Portanto, entre o fim do século XV e a primeira metade do século XVI, a Índia Setentrional experimentou mudanças no poder político – das poderosas dinastias Lodī e Husain para um governo mais forte ainda, o do Império Mogol.

Era claro para todos os envolvidos que, durante esse período, os muçulmanos tinham definitivamente o controle político do norte da Índia. Reconhecendo esse fato, Śrī Caitanya Mahāprabhu disse ao governante local de Navadvīpa: “Sois o qazi, e tens o poder sobre o hindu-dharma”[8]. Edward C. Dimock indica que essa afirmação expressa o “reconhecimento do poder potencial de repressão subjacente nas mãos dos muçulmanos” (Haberman, 1988, p. 40-41).

Apesar do domínio estrangeiro, o Norte da Índia, no início da era moderna, presenciou uma grande turbulência social e cultural. Segundo a afirmação de Pollok, “com o advento da Pax Mughalana[9] (sob os governantes mogóis) a partir da segunda metade do século XVI, inaugurou-se uma nova e dinâmica era de investigação intelectual em muitas partes do subcontinente” (Pollok, 2004, p.19). Para estabelecer a Pax Mughalana, os governantes mogóis, cujo poder político era incontestável, tiveram de manter sua hegemonia militar. Com esse objetivo, lutaram contra os invasores afegãos vindos do Oeste, contra os rebeldes rajaputros vindos do Rajastão, contra o Rei Śivajī vindo do Sul e, ademais, contra os rivais muçulmanos vindos do Leste.

Do ponto de vista cultural e, apesar da insatisfação de muçulmanos ortodoxos, a política de tolerância adotada por alguns dos mais proeminentes governantes mogóis ajudou no fortalecimento da cooperação hindu-islâmica. Foi exatamente nesse mesmo período que se desenvolveu o estilo de arte indo-persa na arquitetura, na pintura e na música que, concomitantemente, influenciou a tradição do Vaiṣṇavismo Gauḍīya, e que viria a se consolidar como um dos fatores religioso-culturais mais importantes da Índia Setentrional pré-moderna.

No que tange à questão política, Haberman ressalta que nem sempre os muçulmanos exerceram todo o potencial de seu poder repressivo, mantendo uma relação política de relativa proximidade com os hindus. Mas “a mera existência do domínio muçulmano produzia um problema sério para a população hindu, visto que as formas anteriores de Hinduísmo dependiam do poder político” (Haberman, 1988, p. 41). No que tange mais especificamente ao Vaiṣṇavismo, Haberman afirma:

“A forma de Vaishnavismo manifesta no Viṣṇudharmottara[10] pré-islâmico revela uma estrutura religiosa dependente de uma imagem e templo estabelecido pela autoridade de um cakravartin, um rei que jamais tenha sido derrotado em batalha, e era considerado como sendo o representante de Viṣṇu na Terra. Imagens notórias dos avatāras de Viṣṇu nessa época eram, significativamente, o vigoroso javari (Varāha) e o poderoso homem-leão (Narasiṁha). O que acontece então quando os muçulmanos derrubam esses elementos essenciais da estrutura vaiṣṇava? O Hinduísmo deve ter passado por uma transformação substancial com o estabelecimento do governo muçulmano e a subsequente perda de seu núcleo político” (Haberman, 1988, p. 41).

Ainda de acordo com Haberman, “um aspecto importante dessa transformação envolvia o aumento da popularidade do deus amoroso e brincalhão, Kṛṣṇa Gopāla”. Ou seja, com o estabelecimento do poder político muçulmano houve uma “mudança de foco nos interesses mitológicos vaiṣṇavas que se deslocaram dos aspectos marcial e majestoso de Viṣṇu para os do apaixonado Deus silvestre” (Haberman, 1988, p. 41).

Ao examinar o desenvolvimento da adoração por Rādhā, a consorte de Kṛṣṇa, Norvin Hein comenta que os hindus, durante os séculos do governo muçulmano, se voltaram para Rādhā e desenvolveram uma teologia centrada nela (Hein, 1995, p. 122). Hein também discorre que houve, antes disso, um afastamento dos aspectos heroicos de Kṛṣṇa. Segundo ele, “o culto erótico foi uma resposta àqueles que ‘viviam oprimidos pelo Hinduísmo ortodoxo’ durante as ‘formidáveis restrições’ da Era Gupta, que impôs à população limites de opções, estreitamento de alternativas, sujeição às exigências rígidas, e início de uma sensação de cativeiro” (Hein, 1986, p.309-310). Curiosamente, grande parte das histórias legendárias dos Purāṇas sobre Kṛṣṇa, de caráter heroico, foram ignoradas após os muçulmanos usurparem e assumirem o controle político (Haberman, 1988, p. 41). Como afirma Haberman:

“Na narrativa mitológica do Bhāgavata Purāṇa, Kṛṣṇa nasce para o propósito eventual de matar seu tio malévolo Kaṁsa e assumir o seu lugar de direito no trono de Mathurā, e mais tarde Dvārakā. Na literatura religiosa posterior, contudo, a vida de Kṛṣṇa nessas duas cidades, as sedes de seu reinado e vida palaciana, não parece ser tão importante; ela é primariamente utilizada para explicar o seu afastamento das gopīs de Vṛndāvana. O mito não muda, mas vive-se uma parte diferente dele. É como se a perda do núcleo político tivesse causado o recolhimento do sentido religioso desse núcleo e o deslocado para outra esfera de sentido” (Haberman, 1988, p. 41-42).

W. G. Archer também observou essa transformação. Ele comenta que, por volta do fim do século XII:

“A história de Kṛṣṇa se alterou completamente. Não que os fatos apresentados no Bhāgavata Purāṇa sejam questionáveis. Mas sim foi a ênfase e os pontos de vistas que foram mudados. Kṛṣṇa o príncipe e sua consorte Rukmiṇī são relegados ao segundo plano e Kṛṣṇa o amante pastor é trazido pontualmente para a frente. Kṛṣṇa não é mais considerado como tendo nascido unicamente para matar um tirano e limpar o mundo dos demônios. Sua tarefa principal agora é justificar a paixão como o símbolo da união final com Deus” (Archer, 1957, p. 72).

A presença muçulmana foi determinante para a mudança de ênfase de um Vaiṣṇavismo heróico para um Kṛṣṇaísmo romântico. Apesar de o “romantismo como uma experiência verdadeira tornar-se mais difícil de ser obtido” sob a rígida moral sexual dos muçulmanos, “ainda assim a necessidade de romance permanece e podemos vê-la na predominância da poesia amorosa em substituição aos desejos reprimidos na vida real. Foi precisamente esse papel que a história de Kṛṣṇa, o amante pastor de vacas, veio cumprir” (Archer, 1957, p. 73). Segundo Haberman, a mudança de ênfase mitológica de um rei herói para um pastor amante pode ser entendida como “afastamento do campo político, mas não afastamento do romantismo efetivo. Pode-se questionar se os muçulmanos conseguiram controlavam as camas dos hindus da mesma forma como fizeram com seus tronos” (Haberman, 1988, p. 42)

Desse modo, parece que os aspectos guerreiro e majestoso de Kṛṣṇa, que predominavam na teologia vaiṣṇava antes da imposição do poder político muçulmano, perderam sua importância no Vaiṣṇavismo posterior que se voltou para Kṛṣṇa como um amante amoroso. “Kṛṣṇa como amante é com certeza um tema pré-islâmico, mas ele tornou-se cada vez mais popular depois que o núcleo político foi tomado pelos muçulmanos. O amante pastor de vacas certamente não é uma figura ligada ao núcleo político” (Haberman, 1988, p. 42).

Para David Kinsley, durante o período de dominação islâmica, “os vaiṣṇavas voltaram-se quase que exclusivamente para a vida supérflua (de Kṛṣṇa) enquanto um jovem de Vṛndāvana”. Para eles, “Vṛndāvana seria um mundo da periferia, que se encontra fora das convenções da sociedade, convenções essas que devem ser abandonadas para se obter a libertação dos grilhões opressivos da existência” (Haberman, 1988, p. 42). Como afirma Kinsley:

“O drama acontece, primeiramente, fora dos parâmetros normais da sociedade. Ele ocorre em uma vila pastoril comum nas florestas de Vṛndāvana. Na verdade, todo o acontecimento é de fora desse mundo. Foi somente após Kṛṣṇa deixar Vṛndāvana que ele começa a assumir responsabilidades sociais e é somente em Vṛndāvana que ele é adorado nos cultos subsequentes de Kṛṣṇa” (Kinsley, 1975, p. 62).

Antes do estabelecimento do governo muçulmano, conceitos de caráter místico ou devocional não predominavam no Vaiṣṇavismo clássico. A presença muçulmana tem, assim, o dom de promover essa mudança nos interesses teológicos dos vaiṣṇavas que se consubstancia como “um afastamento gradual do centro sócio-político dominado pelos muçulmanos, como esfera de sentido religioso, e como uma expansão da jurisdição de um sentido pré-muçulmano relativamente pouco articulado” (Haberman, 1988, p. 43). Haberman continua:

“As escrituras hindus deixam bem claro que qualquer hindu vivendo em um sistema social que não consegue espelhar o dharma hindu, terá sérios problemas. E foi exatamente isso o que muitos hindus do início do século XVI foram obrigados a fazer. Contudo, se houver um pouco de esperança de recuperar o controle da esfera política, haverá uma séria necessidade de expressão de um dharma hindu que torne o mundo de sentido significante bem além da esfera controlada pelos muçulmanos. Foi precisamente isso que os primeiros líderes do Vaiṣṇavismo Gauḍīya proporcionaram” (Haberman 1988, p. 43).

Em seu estudo esclarecedor, Joseph O’Connell, mostra como os vaiṣṇavas gauḍīyas “mudaram sistematicamente o dharma próprio da época[11], da esfera pública para (a esfera) de prema-bhakti” (O’Connell 1970, p. 206). Isso coincide com a observação de Hein sobre “o desvio da esperança pública da antiga tradição vaiṣṇava para um mundo privado e inexpugnável” (Hein 1995, p. 123).

Com isso, podemos concluir que a reação do Vaiṣṇavismo Gauḍīya ao impasse causado pelo domínio muçulmano consubstanciou-se na forma de uma desvalorização do mundo sócio-político. Com efeito, para garantir o funcionamento harmonioso do estado, “os líderes muçulmanos encorajaram os hindus a se voltarem para um mundo de sentido religioso que transcendia a ordem política existente. Essa mudança encontra um paralelo na mudança de foco da mitologia vaiṣṇava” (Haberman, 1988, p. 43).

Essa mudança de perspectiva teológica vaiṣṇava não implicou, entretanto, na ausência de participação de personalidades hindus, mais especificamente vaiṣṇavas nas atividades políticas da corte muçulmana. Alguns deles, inclusive, vincularam-se intimamente à política da corte muçulmana de Gauḍa (O’Connell 1970, p. 351-362). Exemplo disso é o fato de que Rupa Gosvāmī e seu irmão Sanātana Gosvāmī foram ministros importantes do governante muçulmano de Gauḍa. No Bhakti Ratnākara, afirma-se que Rūpa e Sanātana foram ministros (mahāmantrin) muito próximos de Husain Shāh, sendo conhecidos na corte muçulmana como Dabir Khās e Sāker Malik, respectivamente (Vidyālaṁkāra, 1960, p. 28). Historiadores mencionam o surgimento de desavenças entre os irmãos e Husain Shāh e seu consequente afastamento dos primeiros da corte de Gauḍa. O historiador R. C. Majumdar apresenta a seguinte narrativa desse incidente (Haberman, 1988, p. 43):

“Quando Husain pediu para Sanātana o acompanhar durante sua expedição na Orissa, ele tacitamente recusou dizendo: “Você está indo para dessagrar templos hindus e quebrar imagens de deuses hindus; eu não posso acompanhá-lo”. O rei irado atirou-o na prisão, mas ele conseguiu escapar subornando os guardas. Seja por causa disso ou por outras razões, tanto Rūpa como seu irmão Sanātana tornaram-se apáticos em relação à vida mundana e, sendo aconselhados por Śrī Caitanya, ambos renunciaram ao mundo e foram para Vṛndāvana” (Majumdar, 1973, p. 53).

O Bhaktiratnākara menciona que Rūpa e Sanātana apoiaram e se envolveram em atividades culturais e religiosas hindus enquanto trabalhavam como ministros da corte. A narrativa sugere que esse envolvimento acabou gerando uma situação de tensão permanente entre suas identidades hindus e os papéis sociais que desempenhavam na corte muçulmana. Essa situação revelou-se ainda inaceitável para o governante (Shāh) muçulmano. Consequentemente, Rūpa e Sanātana acabaram sendo destituídos de seus cargos (Haberman 1988, p. 44).

É interessante notar que Rūpa e Sanātana, assim como outros líderes do Vaiṣṇavismo Gauḍīya emergente, expressaram enfaticamente em seus escritos uma insatisfação profunda com o papeis sociais que desempenhavam e que os vinculavam ao poder político da época. Segundo O’Connell: “Eles abominavam suas identidades anteriores” (O’Connell 1970, p. 174). Mas, apesar de sua aversão a essas identidades sociais externas, eles demonstravam certo otimismo em relação à possibilidade de transformação de suas identidades interiores.

Os primeiros vaiṣṇavas gauḍīyas tinham um juízo bem maleável sobre a personalidade humana. Na verdade, esse juízo era bem flexível, considerando o fato de que viviam em uma cultura que determinava a personalidade e o comportamento humano pela sua ocupação e status social herdados, além da idade e sexo (O’Connell 1970, p. 171). Isso significa que viam a possibilidade de as pessoas romperem as identidades e os estereótipos que lhes haviam sido atribuídos socialmente. Segundo Haberman, “Essa ruptura se realizava por atos religiosos, que tornava acessível uma identidade última, existente em um mundo de sentido que transcendia o determinismo da identidade social e experiência cotidiana” (Haberman 1988, p. 44).

Dessa forma, Caitanya Mahāprabhu enviou Rūpa Gosvāmī para Vṛndāvana com a missão de sistematizar e desenvolver um método ou processo que abrisse o caminho para o mundo transcendental, bem além de qualquer convenção social. Esse método, que foi denominado sādhana-bhakti, “poderia conduzir os interessados para longe de um mundo sócio-político, cada vez mais sem sentido, e para bem mais próximo do mundo mitológico ideal manifesto nos Purāṇas – mundo esse que transcendia tanto aquele controlado pelos muçulmanos” (Haberman 1988, p. 44-45), bem como aquele das castas hereditárias, estabelecido pela ortodoxia brâmane.

Portanto, segundo Haberman, esse método soteriológico se apresentou no contexto da necessidade de ‘ressocialização’ dos primeiros vaiṣṇavas gauḍīyas (Haberman 1988, p. 45). Nisso, eles estavam de acordo com outras escolas bhakti, que, em contraste com as formas anteriores do Hinduísmo, “não acreditavam que a religião fosse algo com o que e onde a pessoa nasce” (Ramanujan 1973, p.27).

Apesar de remontar suas raízes à tradição védica original, a postura religiosa, aparentemente apolítica, dos vaiṣṇavas gauḍīyas se conformava com o ideal religioso de não-envolvimento também na sociedade tradicional do Hinduísmo. Essa postura constituía sutilmente uma outra forma de revolução contra o regime muçulmano totalitário que não tolerava confrontação direta. “É de fato espantoso ver o desenvolvimento deste amor intenso por Kṛṣṇa em Vṛndāvana, na distância de apenas dois dias de viagem da sede do poder que emitia decretos para transformar toda a Índia em um país muçulmano” (Klostermaier, 1974, p. 96).

Na visão de Alan Entwistle, “Ironicamente, foi durante o reinado de Sikandar Lodi, um ativo opressor do Hinduísmo, que os propagadores da variedade emocional de devoção a Kṛṣṇa vieram em busca dos lugares sagrados de Vraja” (Entwistle 1987, p. 136). Essa situação também é constatada e ao mesmo tempo questionada por Haberman:

“Muitas histórias de Vraja retratam Sikandar Lodi como um destruidor de templos hindus, mas as fontes dessa descrição são do período Mogol, e os mogóis tinham muito interesse em representar os Lodis como governantes injustos. Jamais poderemos saber realmente que tipo de governante era Sikandir, mas o fato de que foi durante o seu reinado que a nova renascença hindu teve início, nos leva a pensar se algo mais complexo estava acontecendo nessa época” (Haberman 2003, p. xxxiii).

De acordo com Ikram, apesar da reputação de Sikandir ser intolerante, “seria correto supor que, no âmbito cultural de seu período, houve um intenso interesse de aprendizado mútuo entre os hindus e muçulmanos, o que contribuiu para uma reaproximação” (Ikram 1964, p. 78). Também é digno de menção que, naqueles tempos, havia uma “sociedade flexível, com redes cada vez mais aperfeiçoadas de transporte e comunicação se estendendo por todo o subcontinente” e que, “em um clima de competição pelo poder entre os regentes muçulmanos, os reis hindus se apresentavam como aliados potenciais” (Haberman 2003, p. xxxiii).

Foi nesse clima, com hindus e muçulmanos convivendo em uma relativa harmonia, que Navadvīpa[12] tornou-se um centro acadêmico do navya-nyāya[13] e ficou famoso como a sede do aprendizado do sânscrito no medievo indiano. Isso a transformou no baluarte do bramanismo ortodoxo e de grandes debates sobre as escrituras (Acaryya 1984, P. 147). Na medida em que a renascença espiritual da Índia se desenvolveu em volta da personalidade de Śrī Caitanya Mahāprabhu, o mundo do intelecto foi equilibrado pelo mundo da devoção (Rosen 1988, p.12).

Da mesma forma que, a partir de Navadvīpa, Śrī Caitanya Mahāprabhu inspirou a devoção prática a Kṛṣṇa, inaugurando o Movimento de saṅkīrtaṇa (Cantar dos Santos Nomes) e fornecendo o fundamento teológico de bhakti, os seus principais seguidores, os Seis Gosvāmīs liderados por Rūpa, Sanātana e Jīva, articularam, a partir de Vṛndāvana, as bases teológicas, estéticas e filosóficas da tradição. Sanātana Gosvāmī desenvolveu a teologia, os rituais e a hermenêutica. Rūpa Gosvāmī trabalhou com a estética, a poesia e os drama religiosos. Jīva Gosvāmī, trabalhando com Gopāla Bhaṭṭa, proveniente do Sul da Índia, concentrou-se na filosofia, hermenêutica e poesia. Gopāla Bhaṭṭa, por sua vez, forneceu os fundamentos ritualísticos para a adoração e prática da tradição. Os outros dois Gosvāmīs que completam o grupo foram Raghunātha Bhaṭṭa Gosvāmī e Raghunātha Dāsa Gosvāmī. Com isso, o Vaiṣṇavismo Gauḍīya adquiriu uma identidade própria em relação a outras teologias bhaktis mais antigas, como as de Rāmānuja e Nimbārka, e aquelas contemporâneas a Caitanya Mahāprabhu, como as de Vallabha e Madhusūdhana Sarasvatī.

NOTAS:

* Texto adaptado de: “A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): Um estudo do Bhakti-rasāmṛta-sindhu de Rūpa Gosvāmī” / Lucio Valera. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, 2015.

[1] A história do budismo indiano deve ser vista em relação ao florescimento e à queda do budismo na Bengala. A Bengala teve um lugar singular na história do budismo indiano, pois foi lá que o budismo se manteve por mais tempo, até o fim do século XII d.C., bem depois de ter desaparecido em outras partes da Índia. Segundo Nirukumar Chakma, “a Bengala foi o lar do que foi considerado como uma forma degenerada e deturpada do budismo conhecida como budismo tântrico, que se desenvolveu durante o período Pala, entre os séculos IX e XII d.C. Eventualmente, por vários motivos o budismo foi removido da Bengala, sendo o mais importante deles a perda do apoio real, o renascimento do bramanismo e a invasão muçulmana turca” (Chakma 2011, p.37).

[2] Termos que originalmente se aplicavam aos gregos da Ásia Menor, especialmente os jônios, que mais tarde passaram a ser aplicados para designar também os muçulmanos, como qualquer outro estrangeiro do Ocidente ou Oriente Médio.

[3] Devotos da Śakti, a Mãe Divina. Uma das religiões do Hinduísmo tradicional.

[4] Cantar congregacional (sankīrtana) dos nomes de Kṛṣṇa, pelas ruas da cidade (nagar).

[5] Os rajaputros, do sânscr. rajaputra ‘filho do rei’, são membros de um dos clãs patrilineares do centro e do norte da Índia, e em algumas partes do Paquistão. São descendentes dos xátrias, uma das classes dominantes de grandes guerreiros no Subcontinente Indiano, em especial no Norte da Índia.

[6] Não confundir ‘mogol’ com ‘mongol’, apesar de ‘mogol’ significar ‘mongol’ em persa. Os ‘mongóis’ relacionam-se com o ’Império Mongol’, originário da Mongólia, que existiu durante os séculos XIII e XIV e foi o maior império em área contígua da história, e se estendia da Europa Central até o Mar do Japão, ao norte até a Sibéria, ao leste e ao sul até o subcontinente indiano, a Indochina e o planalto iraniano e, por fim, ao oeste até a Arábia. Por sua vez, os ‘mogóis’ estão relacionados com o ’Império Mogol’, que chegou a dominar quase todo o subcontinente indiano entre 1526 e 1857. A designação Mogol parece ter sido apenas atribuída durante o século XIX, denotando que seu fundador Babūr era descendente direto de Gengis Khan. Daí a existência em português do nome ‘grão mogol’ para designar os soberanos mogóis. No ano de 1520, Babūr, que reinou o Afeganistão em Kabur por duas décadas, invadiu a Índia e na batalha de Panipat tornou-se senhor do Punjab, restabelecendo um novo Império mongol independente na Índia, que seria conhecido pelo nome de ’Império Mogol’, para distingui-lo das conquistas anteriores dos ‘mongóis’.

[7] Gauḍa ou Gaur, nos séculos XI e XII, foi a capital da Dinastia Sena, sendo também conhecida como Lakhnauti (Lakshmanavati). Depois, na época do domínio muçulmano, foi a capital dos sultãos da Bengala até o ano de 1565, quando também era conhecida como Jannatabad.

[8] Caitanya-caritāmṛta, citado por Edward C. Dimock Jr., “Hinduism and Islam in Medieval Bengal”, in Aspects of Bengal History and Society, Rachel Van M. Baumer (edit) (Honolulu: University Press of Hawaii, 1975), p.6.

[9] Para entender a Pax Mughalana, temos de falar sobre a Pax Mongolica (termo latino para a ‘paz mongol’). A Pax Mongolica (similar à Pax Romana) é uma frase atribuída por intelectuais ocidentais para descrever um período de paz experimentado pelos habitantes do vasto território da Eurásia devido às conquistas do Império Mongol de Gengis Khan, nos séculos XIII e XIV. As conquistas tiveram como efeito a ligação do mundo Ocidental com o mundo Oriental. A Rota da Seda, utilizada para trocas comerciais, ficou sob o domínio do Império Mongol. O termo Pax Mongolica, portanto, descreve a facilidade criada para o comércio pela união desses territórios. Por sua vez, quando Babur, vindo da Pérsia, dominou o subcontinente indiano, ele e seus descendentes estabeleceram uma versão indo-persa do Império Mongol, o Império Mogol (1526-1857), possibilitando também na região uma assim-chamada Pax Mughalana, ‘paz mogol’.

[10] O Viṣṇudharmottara Purāṇa (ou simplesmente Viṣṇudharmottara) é um texto enciclopédico que lida, entre outros temas, com direito, política, diplomacia e estratégia militar. Ele é considerado um suplemento ou apêndice do Viṣṇu Purāṇa.

[11] O conceito de yuga-dharma, ‘o dever da era’, no Hinduísmo, implica que nas diferentes eras ou períodos históricos há a predominância de um processo religioso, ou de autorrealização, específico sobre os outros existentes, que, contudo, não perdem a sua validade. Por exemplo, segundo o Vaiṣṇṇavismo Gauḍīya, o yuga-dharma para a era atual seria o processo de cantar os santos nomes do Senhor, hare-nama kīrtana.

[12] Navadvīpa foi a capital do Império Sena da Bengala no século XII. Juntamente com a cidade de Nadiya, foi um grande centro de educação e erudição, por mais de cinco séculos, sendo por isso conhecida como a Oxford da Bengala. Foi o local de nascimento de Śrī Caitanya Mahāprabhu no século XV.

[13] A escola do Navya Nyāya (neológica), que se caracterizou pela ênfase quase que exclusiva nos prāmaṇas (meios válidos de se obter conhecimento) e que recebeu influência de pensadores mais antigos como Vācaspati Miśra (900-980), foi fundada pelo filósofo Gaṅgeśa Upādhyāya (século XIII d.C.) de Mithila, autor do Tattva Cintāmaṇi (A pedra filosofal das essências). O Navya-Nyāya, que criou uma cultura de ciência teórica na Índia, é bem conhecido pelo seu rigor metodológico, tendo contribuído para o estudo das Escrituras (śāstras) com sua sutileza linguística, indefinição estilística e aproximações teóricas. O mérito das suas especulações situa-se proeminentemente em seu método de análise dos conceitos e em sua formulação de uma terminologia exata.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ACHARYYA, Debnarayan. The Life and Times of Sri Krishna Chaitanya. Calcutta: Firma KLM Private, 1984.

ARCHER, W.G. The Loves of Krishna in Indian Painting and Poetry. New York: Grove Press, 1957, p. 72.

CHAKMA, Niru Kumar, “Buddhism in Bengal: A Brief Survey”, Bangladesh e-Journal of Sociology, Vol. 8, n. 1, January 2011, p.37.

ENTWISTLE, Alan, Vraj: Center of Krishna Pilgrinage. Groningen: Egberg Forsten, 1987.

HABERMANN, David L. Acting as a Way of Salvation: A Study of Rāgānugā Bhakti Sādhana. New York: Oxford University Press, 1988.

______. (trad.) The Bhaktirasāmṛtasindhu of Rūpa Gosvāmin. New Delhi: Indira Gandhi National Centre for the Arts; Motilal Banarsidass Publishers, 2003.

HEIN, Norvin. A Revolution in Kṛṣṇaism: The Cult of Gopāla. History of Religions 25, no. 4 (Maio 1986): 309-310

______. Rādhā and Erotic Community. In. John Stratton Hawley, & Donna Marie Wulff, (edit.) The Divine Consort: Rādhā and the Goddesses of India. Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd., 1995.

IKRAM, S.M. Muslim Civilization in India. New York: Columbia University Press, 1964.

KINSLEY, David R. The Sword and the Flute. Berkeley: University of California Press, 1975.

KLOSTERMAIER, Klaus. The Bhaktirasāmṛtasindhubindu of Viśvanātha Cakravartin. Journal of the American Oriental Society. Vol 94, No. 1 (jan.-mar., 1974), p. 96-107.

LAHIRI, Aloka, Chaitanya Movement in Easter India: An Old Book. Calcutta: Punthi Pustak., 1993.

LEHMANN, F. “Ẓahīr-al-Dīn Moḥammad Bābor” In Encyclopædia Iranica. Online Ed. December 1988 (updated August 2011). Disponível em <http://www.iranicaonline.org/articles/babor-zahir-al-din> Acesso em 13 out. 2014.

O`CONNELL, Joseph T., Social Implications of the Gauḍīya Vaiṣṇava Movement (Ph.D. dissertation, Harvard University, 1970).

______. Gaudiya Vaisnava symbolism of deliverance (uddhara, nistara)… from evil, Journal of Asian and African Studies 15, 1980, 124-135.

POLLOCK, Sheldon L., Forms of Knowledge in Early Modern South Asia: Introduction, Comparative Studies of South Asia, Africa and Middle East, Vol. 24, Number 2, 2004, 19-21.

RAMANUJAN, A. K. Speaking of Śiva. Baltimore: Penguin Books, 1973.

ROSEN, Steven J. India’s Spiritual renaissance: The Life and Times of Lord Chaitanya. New York: FOLK Books, 1988.

VIDYĀLAṀKĀRA, NavīKṛṣṇa dāsa (edit.). Bhakti-ratnākara. Calcutta: Gaudiya Math, 1960.

=====================

#hinduismo#islamismo#historiareligiao#historiaindia#vaishnavismo#ConscienciadeKrishna#VaishnavismoGaudiya#CaitanyaMahaprabhu#lokasaksi

Deixe um comentário