Segundo os Vedas, antes da criação, situado em Sua morada suprema, existia o Puruṣa, a Pessoa Original, e nada mais existia além dEle:
asac ca sac ca parame vyoman
“Além de toda causa e efeito Ele existe no céu espiritual” (Ṛg-Veda, 10.5.7).
Descreve-se essa Personalidade Original nos Purāṇa e Āgamas, como Nārāyaṇa: nārāyaṇaḥ paraṁ brahma, “Nārāyaṇa é o Ser Supremo” (Ahirbudhnya Saṁhitā, 5.2). Por sua vez o Viṣṇu Purāṇa descreve-nO como Bhagavan, o Ser pleno das seis opulências (bhaga) ou qualidades divinas:
aiśvaryasya samāgrasya
vīryasya yaśasaḥ śriyaḥ
jñāna-vairāgyayoś caiva
ṣaṇṇaṁ bhāga itīṅgaṇa
“Sabedoria (aiśvarya) plena, poder (vīrya), fama (yaśaḥ), beleza (śriyaḥ), conhecimento (jñāna) e renúncia (vairāgya) – essas são as seis opulências [da Personalidade Suprema]”. (Viṣṇu Purāṇa, 6.5.74).
Sabe-se que antes da criação cósmica não havia fenômeno material algum manifesto, seja ele grosseiro, sutil ou primordial. Esse estado primordial e imanifesto da Natureza material era como o de completa escuridão, destituído de sinais de identificação, incognoscível, sendo conhecido como pradhāna (“primeiro”).
Nesse estágio os três modos da natureza (guṇas), imanifestos, permanecem em equilíbrio. A criação somente pode ter início quando os modos são agitados e saem desse equilíbrio. Este desbalanceamento original ocorre em pradhāna quando o Senhor Supremo dirige-lhe o Seu olhar.
Tal ato causa a fecundação de prakṛti, ou natureza material, com as jīvas, as almas condicionadas. Isso é descrito por Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā:
mama yonir mahad brahma
tasmin garbhaṁ dadhāmy aham
“O grande Brahman é a minha matriz, nele eu coloco o germe [cósmico]” (Bhagavad-Gītā, 14.3).
Nesse texto da Bhagavad-Gītā, a palavra brahma indica prakṛti e não o aspecto impessoal do Senhor conhecido como Brahman, “o absoluto”.
Dessa forma, quando deseja criar, Bhagavān se manifesta em Seu aspecto parcial Mahā-Viṣṇu (o primeiro puruṣa). Todo o processo da criação vem Dele, em consequência de Sua vontade. Mahā-Viṣṇu deita no oceano causal espiritual (Kāraṇa-samudra) existente entre os mundos material e espiritual.
Quando deseja criar, Ele incita Māyā à atividade, lançando lhe Seu olhar. Isso é explicado nas Upaniṣads:
tad aikṣata, bahusyāṁ prajāyeyeti
“Ele contemplou (olhou): Tornar-me-ei muitos e nascerei” (Chāndogya Upaniṣad, 6.2.3).
Com esse olhar, ocorrem dois fenômenos: um número infinito de jīvas, como se fossem os raios do Sol, emanam do corpo espiritual de Mahā-Viṣṇu, e infinitos universos brotam da prakṛti. Ambos, então, se conectam para dar início à evolução cósmica. Esse ato criativo do Puruṣa e Prakṛti é descrito, simbolicamente, como sendo a relação do Pai e a Mãe divinos, A mãe seria a energia material Prakṛti e o pai o Senhor Śiva ou Śambhu.
A Divindade suprema na forma do “Tempo” (kāla), a personificação do olhar criativo de Mahā-Viṣṇu, é causa instrumental, operando por detrás das diferentes e sucessivas transformações da energia material. Isso é descrito no Śrīmad-Bhāgavatam:
viśvaṁ vai brahma-tan-mātraṁ
saṁsthitaṁ viṣṇu-māyayā
īśvareṇa paricchinnaṁ
kālenāvyakta-mūrtinā
“A manifestação cósmica do Senhor Viṣṇu manifesta-se como Sua energia material, por intermédio de kāla, o Seu aspecto imanifesto e impessoal. Ela está situada como a manifestação objetiva do Senhor sob a influência da Sua energia material” (Śrīmad-Bhāgavatam, 3.10.12).
Śiva seria, portanto, uma expansão do aspecto imanente, imutável, ilimitado, imanifesto e impessoal da Deidade, que, para o ato criativo, manifesta-Se como o tempo (kāla). Ele é a causa instrumental da criação, o instrumento do Senhor Supremo nos passatempos da criação material e a fonte primordial das interações dos três modos da natureza material. Por meio dele a manifestação cósmica separa-se do Senhor Supremo como a energia material.
Quando prakṛti é fecundada, em primeiro momento, surge mahat (ou mahat-tattva), que é constituído do princípio vital (prāṇa) e da consciência cósmica (citta), causados pela manifestação e rajas e sattva, respectivamente.
Logo depois, quando tamas se manifesta no mahat, ele evolui e se manifesta como ahaṅkāra, o princípio do ego mundano (ou falso-ego). Do aspecto tamas do ahaṅkāra surge os mahā-bhūtas, os cinco elementos densos, e os tan-mātrā, os atributos sutis dos elementos. Do aspecto rajas do ahaṅkāra surge buddhi, a”inteligência” e os cinco karmendriyas “sentidos funcionais”. Por sua vez do aspecto sattva do ahaṅkāra surge a mente (manas) e os cinco indriyāṇīs, “sentidos cognitivos”.
Todos esses vinte e quatro elementos manifestos e impelidos pela ação instrumental do tempo (kāla), juntos, formam a base da evolução de infinitos universos.
Portanto, impelidos pelo Senhor, todos esses elementos se combinam para funcionar de maneira ordenada e, juntos, dar origem ao ovo universal (aṇḍam), onde o Senhor, na segunda manifestação do Puruṣa Avatāra, conhecida como Garbhodakaśāyī Viṣṇu, deita, fixando o Seu lugar de residência dentro do Universo recém-criado.
Sementes de infinitos Universos (brahmāṇḍas) residem em cada poro do corpo espiritual do Mahā-Viṣṇu, e elas são exaladas e inaladas por Ele em Sua respiração. Sua manifestação parcial Garbhodakaśāyī Viṣṇu entra em cada um dos milhões de Universos (brahmāṇḍas) que emanam Dele.
Ao entrar em cada Brahmāṇḍa, o Garbhodakaśāyī Viṣṇu só encontra escuridão, e nenhum local para repousar. Ele então enche a metade do Brahmāṇḍa com o suor de Seu corpo‚ e, neste oceano assim formado, Ele deita sobre a cobra de mil cabeças chamada Śeṣa. Do umbigo do Seu corpo brota um caule e uma lótus dourado, e dentro da corola dessa flor de lótus nasce então o Demiurgo Brahmā, de quatro cabeças, que finalmente cria o Universo inteiro, com os quatorze mundos (lokās).
No primeiro estágio da Criação, denominado sarga, são manifestos os elementos constituintes do Universo acima descritos. Já no estágio subsequente da criação, chamado de visarga (ou vyaṣṭi sṛṣṭi), mistura-se os elementos criados na sua proporção exata para começar a construção. Portanto, no processo da criação, não se utiliza os elementos em sua forma pura.
Os elementos materiais grosseiros (pañca-mahā-bhūtas) – éter (ākāśa), ar (vāyu), fogo, (agni), água (āpaḥ) e terra (pṛthvī) – têm de passar por mais outra transformação, chamada pañcī-karaṇam, “quintuplicação”, para que tenham condições de formar os objetos densos do Universo.
É somente então, que o Senhor Brahmā, utilizando os elementos misturados pañca-bhūtas, passa à segunda fase da criação (visarga). Ele cria ou manifesta toda a estrutura do Cosmo, com todas as dimensões planetárias e os corpos de incontáveis entidades vivas, de acordo com a impressão cármica armazenada de suas vidas passadas.
Cada um dos universos ou Brahmāṇḍa, manifestos por Brahmā, possuem a forma de um ovo (aṇḍa) ou de uma fruta kapittha (a fruta de bael –Aegle marmelos), formado pelas transformações dos elementos grosseiros (mahā-bhūtas) e contém quatorze mundos (lokās), sete inferiores e sete superiores.
Situados na região central dos quatorze mundos, temos tri-lokī, os três mundos. É importante compreender bem o que são esses três planos, pois é neles que as almas condicionadas (jīva-bandha) sofrem a influência do karma e do saṁsara, a roda de nascimentos e mortes. É ali onde ocorre a sua evolução. Esses três mundos, Bhūr-loka, Bhuvar-loka e Svar-loka (o mesmo que Svarga-loka), e os mundos abaixo deles, são criados no início do dia de Brahmā (4.300 bilhões de anos terrestres, ou dois mil anos celestiais), e são aniquilados com a chegada da noite de Brahmā.
Os outros quatro mundo superiores, Mahar-loka, Jana-loka, Tapa-loka, e Satya-loka (mais conhecido como Brahmā-loka), situam-se acima de trilokī e preenchem o resto do Universo e permanecem por toda a vida de Brahmā (311.040 trilhões de anos terrestres ou 864 trilhões de anos celestiais).
Bhūr-loka é o mundo físico ou plano terrestre e abrange a Terra juntamente com as regiões inferiores ou subterrâneas do Universo. As palavras martya e Martya-loka – que vem de mṛtyuḥ, “morte” – descrevem esse plano, e indica o fato der serem locais de sofrimento onde ocorre a morte. Os sete mundos ou regiões inferiores são genericamente designadas de Pātāla. Descritos como discos situados em dimensões abaixo e paralelas à Terra, eles se dividem em sete camadas: Pātāla, Rasātala, Mahātala, Talatala, Sutala, Vitala e Atala.
Bhuvar-loka é o plano atmosférico, mais conhecido como o espaço intermediário (antarikṣa), e abrange a região situada acima Terra, indo até a órbita do Sol e de seus planetas.
Svar-loka, é o plano ou esfera celestial (paraíso ou reino de Indra), juntamente como o Sol ele abrange a Lua (candra-loka), as constelações lunares (Nakṣatras), os planetas solares – tais como Mercúrio (Buddha), Vênus (Śukla), Marte (Bhauma) e Júpiter (Bṛhaspati) -, as sete constelações da Ursa Maior (Saptaṛsi) e a Estrela Polar (Dhruva-loka).
O Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad descreve esses três mundos e seus habitantes:
atha trayo vāva lokāḥ manuṣya
lokaḥ pitṛ-lokaṁ deva-loka iti
“Agora, esses são na verdade os três mundos: o mundo dos homens, o mundo dos antepassados e o mundo dos deuses” (Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, 1.5.16).
Bhūr-loka é parcialmente conhecido pelos nossos sentidos grosseiros, sendo às vezes acessível e outras vezes inacessível. Mas Bhuva-loka e Svar-loka são inacessíveis. Os seres humanos podem viver somente em Bhūḥ loka e ter algum vislumbre de Bhuvar loka. Segundo Srila Bhaktivedanta Swami Prabhupada: “Os seres humanos vivem na Terra e outros planetas semelhantes no grupo de planetas Bhūr e Bhuvar, mas os semideuses vivem em Svar, os planetas celestiais.” (Śrīmad-Bhāgavatam, 1.9.45, Significado.)
Em Bhūr-loka encontramos a predominância do elemento terra (pṛthivi) e em Bhuvar-loka a do elemento água (āpaḥ). Em Svarga-loka predomina o elemento fogo (agni ou tejas) e todos os corpos dos habitantes dessas regiões são reluzentes e brilhantes; vindo daí o nome deva, que significa “brilhante”.
Agora, acima dos três mundos, temos primeiramente Mahar-loka, onde também predomina as formas mais sutis do elemento fogo (tejas), é a morada de Bṛgu Muni (Śrīmad-Bhāgavatam, 2.2.25) e de outros santos purificados. Situa-se acima da Estrela Polar e seus habitantes vivem pela duração do dia de Brahmā (kalpa), e no fim desse dia, quando os três mundos são consumidos pelo fogo da devastação, eles fogem para Jana-loka. (Viṣṇu Purāṇa, 2.7.12; 6.3.28,29, Markandeya Purāṇa, 46.39,40).
Jana e Tapo-loka são as moradas dos filhos mentais de Brahmā, tais como Sanat Kumara e outros santos completamente situados em renúncia (vairagya). Nesses planos predomina o elemento ar (vāyu). Finalmente temos Satya ou Brahmā-loka, onde predomina o elemento éter (kham ou ākaśa), que é a própria morada do Senhor Brahmā, o demiurgo ou criador deste Universo.