A NECESSIDADE E IMPORTÂNCIA DO MESTRE ESPIRITUAL

Comportamento Educação Filosofia Mestres

por Lokasākṣi Dāsa

No contexto de uttama-bhakti, ‘a devoção mais elevada’, e seus diferentes estágios de vaidhi-sādhana (disciplina regulada pelas Escrituras), rāgānugā-sādhana (disciplina espontânea), bhāva (amor preliminar por Deus) e prema (amor pleno por Deus), encontramos um elemento essencial que possibilita e garante a sua realização efetiva: é a presença do guru ou mestre espiritual genuino (guru-tattva).

Essa característica, que perpassa todo o vaiṣṇavismo, está profundamente enraizada na tradição do hinduísmo como um todo. Com efeito, uma das caraterísticas fundamentais de todas as tradições védicas é a necessidade da orientação de um guru, ‘mestre’. Guru é uma palavra sânscrita que indica aquela pessoa santa e venerável que é o preceptor na ciência espiritual.

Literalmente, guru significa ‘pesado’, indicando aquele que é pesado pelo conhecimento. Segundo a Advaya-tāraka Upaniṣad:

gu-śabdas tvandha-karāḥ syād ru-śabdas tan nirodhakaḥ,

andha-kāra-nirodhitvād gurur ityabhidhīyate

“ ‘Gu’ significa escuridão e ‘ru’ aquele que remove. Portanto o sentido composto da palavra ´guru’ é aquele que remove a escuridão da ignorância”(Advaya-tāraka Upaniṣad, 16.).

As tradições védicas e as delas derivadas ou semelhantes têm como essencial a relação entre guru e discípulo (śiṣya). Esse princípio é o conhecimento, mais especificamente o conhecimento espiritual, que se transmite através de uma forte relação baseada nos ideais que o iniciado respeita, confia e segue e na instrução pessoal que lhe garante a realização do conhecimento almejado, que o guru personifica. A Muṇḍaka Upaniṣad esclarece que:

tad vijñānārthaṁ sa gurum evābhigacchet

samitpāṇiḥ śrotriyaṁ brahma-niṣṭham

“Para aprender a ciência transcendental, a pessoa deve, com uma atitude servil, se aproximar de um guru versado nas escrituras e situado na Verdade Absoluta” (Muṇḍaka Upaniṣad, 1.2.12).

Essa mesma prescrição é confirmada na Bhagavad-gītā:

tad viddhi praṇipātena paripraśnena sevayā,

upadekṣyanti te jñānaṁ jñāninas tattva darśinaḥ

“Busca isso [o conhecimento espiritual], por meio da submissão humilde, por meio do sincero questionamento e por meio do serviço [devocional]. Eles [os gurus] te darão o conhecimento, pois são conhecedores e videntes da verdade”(Bhagavad-gītā, 4.34).

Os diferentes gurus ensinam e transmitem tanto o “conhecimento superior” (parā-vidyā), contido no Vedānta, e nos Āgamas [tantras] – que almeja mokṣa, “libertação” e prema “amor puro por Deus” –, como o “conhecimento inferior” (aparā-vidyā) que são as diferentes ciências como a hermenêutica do karma e rituais (mīmāṁsā ), a gramática (vyākaraṇa ) , etimologia (nirukta), métrica (chanda), astronomia e astrologia (jyotiṣa), arquitetura (vastu), medicina (ayurveda), artes marciais (dhanur-veda) e belas artes (Natya-śāstra – como o teatro, dança, música e literatura). A diferença entre esses dois tipos de conhecimento, o inferior e o superior, é descrita na Mundaka Upanisad, 1.1.4-5.

tasmai sa hovāca

dve vidye veditavye iti ha sma yad

brahma-vido vadanti parā caivāparā ca

“Para ser conhecido, dizem os videntes da Verdade Absoluta, existem dois tipos de conhecimento: o superior e o inferior.”

(Muṇḍaka Upaniṣad, 1.1.4)

tatrāparā ṛg-vedo yajur-vedaḥ sāma-vedo atharva-vedaḥ

śikṣā kalpo vyākaraṇaṁ niruktaṁ chando jyotiṣam iti

atha parā yayā tad akṣaram adhigamyate

“Inferior é o conhecimento dos quatro Vedas (o Ṛg, o Sāma. o Yajur e o Atharva), bem como o conhecimento dos seis Vedāṅgas que ensinam a fonética, os rituais, a gramática, a métrica, a astronomia e a etimologia. Superior é o conhecimento pelo qual o Imperecível é alcançado.’ (Muṇḍaka Upaniṣad, 1.1.5)

Segundo Caitanya Mahāprabhu, brahmāṇḍa bhramite kona bhāgyavān jīva, “Todas as entidades vivas vagueiam pelo universo inteiro […] dentre elas algumas são afortunadas se, pela graça de Kṛṣṇa e do guru, receberem a semente da trepadeira de bhakti” (Śrī Caitanya Caritāmṛta, 2.19.151).

Portanto, Rūpa Gosvāmī, quando apresenta os princípios disciplinares de sādhana-bhakti, no Bhakti-rasāmṛta-sindhu, (1.2.74, 97), coloca em primeiro lugar guru-padāśraya, que é “buscar refúgio em um mestre espiritual”, a fim de “ser iniciado” (śrī-kṛṣṇa-dīkṣādi), “servi-lo com confiança” (viśrambheṇa guroḥ sevā) e dele “receber instruções sobre Kṛṣṇa” (śrī-kṛṣṇa-śikṣa ).

O guru é a manifestação externa da Divindade enquanto Paramātmā, situado no coração de todos os seres. Dessa forma o mestre “é como o Senhor Supremo que concede o conhecimento que ilumina”[10]. Isso é esclarecido por Śrī Nārada Muni, no Śrīmad Bhāgavatam:

yasya sākṣād bhagavati jñāna-dīpa-prade gurau,

martyāsad-dhīḥ śrutaṁ tasya sarvaṁ kuñjara-śaucavat

“O mestre espiritual deve ser considerado como sendo diretamente o Senhor Supremo porque ele dá conhecimento transcendental que ilumina. Consequentemente, para todo aquele que defende o conceito material de que o mestre espiritual é um ser humano comum, tudo acaba fracassando. Sua iluminação e seus estudos e conhecimento védicos são como o banho do elefante” (Bhāgavata Purāṇa, 7.15.26).

Sobre esse ponto, Kṛṣṇa também afirma, no Śrīmad Bhāgavatam, que:

ācāryaṁ māṁvijānīyān nāvamanyeta karhicit,

na martya-buddhyāsūyeta sarva-devo-mayo guruḥ

“Deve-se saber que o ācārya [mestre espiritual] sou eu mesmo e não se deve jamais desrespeitá-lo de qualquer forma, nem o invejar, julgando-o um homem comum. O guru é o representante de todos os deuses” (Bhāgavata Purāṇa,11.17.27).

Portanto, o processo de uttama–bhakti, que culmina na experiência estética enquanto devoção emocional plena por Kṛṣṇa (bhakti-rasa), implica, em todo os seus níveis, em relacionar-se com Kṛṣṇa por meio de seus associados eternos. O guru é, portanto, a manifestação tanto da Divindade como de seus associados eternos.

Como manifestação e representante da Divindade, o guru é o objeto de nosso serviço (seva), bem como fonte do conhecimento que surge em nosso coração para graça divina. A Bhagavad-gītā também fala sobre essa fonte de inspiração e conhecimento interior, que é identificada com a Divindade em seu aspecto de Paramātmā:

sarvasya cāhaṁ hṛdi sanniviṣṭo

mattaḥ smṛtir jñānam apohanam ca

“Estou situado no coração de todos, de mim surge a lembrança, conhecimento e esquecimento” (Bhagavad-gītā, 15.15.)

Por sua vez, a Śvetāśvatara Upaniṣad explica como e porque isso acontece:

yasyadeve parābhaktir yathā-deve tathā gurau,

tasyaite kathitā hy arthāḥ prakāśantemahātmanaḥ

“Somente àquelas grandes almas dotadas de devoção superior (parā-bhakti), tanto para com o Senhor como para com o guru, é que o sentido do conhecimento espiritual é revelado” (Śvetāśvatara Upaniṣad, 6.23).

O guru também recebe serviço e adoração por ser manifestação tanto da energia interna (svarūpa-śakti) da Divindade, que se manifesta na forma dos “associados eternos” (pāriṣadas/parikaras) da personalidade da Divindade no plano espiritual, como de Paramātmā, a Superalma presente no coração de todos os seres.

Nessas duas capacidades, o guru instrui e capacita o discípulo para buscar e servir a Divindade. Como o representante dos personagens arquetípicos paradigmáticos, que são os associados eternos de Kṛṣṇa, ele concede a graça na forma da energia da devoção, que possibilita o devoto amar e obter um relacionamento com Kṛṣṇa.

Dessa forma, o devoto, após a prática regulada (vaidhī sādhana) e espontânea (rāgānugā sādhana), alcança o estado perfeccional de bhakti, que se desdobra em duas fases, amor preliminar (bhāva bhakti) e amor pleno (prema bhakti).

Há três categorias de devotos perfeitos (siddhas) que alcançaram essa fase e, portanto, podem ser todos eles considerados como mestres espirituais (guru). Um é o sādhana-siddha, ou seja, aquele que se libertou pela prática regulada (sādhana)de bhakti. Outro é o kṛpa-siddha, que se libertou pela graça (prasāda ou kṛpa) de Kṛṣṇa ou seu devoto. E o terceiro é o nitya-siddha que jamais se esqueceu de Kṛṣṇa em toda a sua existência (Prabhupāda, Śrī Caitanya-caritāmṛta, ādi-līlā, São Paulo: BBT, 1984, Vol.2, p. 153).

Rūpa Gosvāmī descreve a qualificação necessária para um mestre (guru) com as seguintes palavras:

vāco vegaṁ manasaḥ krodha-vegaṁ jihvā-vegam udaropastha-vegam

etān vegān yo viṣaheta dhīraḥ sarvām apīmāṁ pṛthivīṁ sa śiṣyāt

“Uma pessoa sóbria que seja capaz de tolerar o desejo de falar, as exigências da mente, as ações da ira e os impulsos do estômago e dos órgãos genitais é qualificada para fazer discípulos em todo o mundo” (Upadeśāmṛta, 1).

É importante notar que o guru essencialmente é apenas um : todos os gurus têm o mesmo propósito que é revelar a Divindade como o guru original e interior. Mesmo sendo um, o guru se desdobra em três dimensões:(i) o dikṣā-guru, “mestre iniciador”; (ii) o sīkṣā-guru, “mestre instrutor”; e (iii) uma subcategoria do sīkṣā-guru, o vartma-pradarśaka-guru, “mestre que inicialmente mostra o caminho”.

Uma mesma pessoa pode ser qualquer uma dessas dimensões, ou todas elas simultaneamente.

Os vaiṣṇavas gauḍīyas se submetem a um processo de iniciação (dīkṣā), outorgada pelo dikṣā-guru, sob cuja orientação são treinados a fim de empreender e realizar as práticas soteriológicas.

De acordo com a tradição, no momento da iniciação (upanayana) o discípulo recebe, tradicionalmente, mantras védicos específicos que deverão ser recitados tanto em voz alta quanto mentalmente, como ato de adoração a Viṣṇu ou Kṛṣṇa. A prática da oração repetitiva é conhecida como japa.

Por sua vez, śīkṣā-guru indica aquele mestre que dá instruções (sīkṣa) sobre o conhecimento espiritual e orienta o discípulo no processo de evolução espiritual. Segundo a tradição vaiṣṇava gauḍīya, o devoto pode ter apenas um mestre iniciador (dikṣā-guru), mas não existe restrições quanto ao número de mestres instrutores (śīkṣā-gurus). Geralmente, o devoto aceita o mestre instrutor (śīkṣā-guru) mais proeminente em sua vida como seu mestre iniciador (dikṣā-guru).

Quanto ao mestre vartma-pradarśaka-guru, que significa, literalmente, “o mestre que indicou o caminho”, trata-se do primeiro śīkṣā-guru, “mestre instrutor” do devoto; sendo aquele que mostrou e motivou o devoto a adotar o caminho da devoção.

A eficácia de todo o processo acima descrito depende de o guru ser qualificado e autêntico. Dessa forma o guru, além de sua qualificação moral deve estar conectado com a fonte do conhecimento espiritual, ou seja, deve estar situado em uma linhagem de mestres que remonta ao conhecimento original que segundo a tradição vaiṣṇava gauḍīya foi transmitido por Brahmā no início da criação. Isso é explicado no Padma Purāṇa:

sampradāya-vihīnāye mantrās teniṣphalā matāḥ

“Fora da tradição discipular (sampradāya), o mantra recebido na iniciação não traz resultados” (Padma Purāṇa, citado no Prameya-ratnavali 1.5 de Baladeva Vidyābhuṣana.).

O Padma Purāṇa também identifica quatro sampradāyas vaiṣṇavas na presente era (conhecida como Kali-yuga) que ainda preservam o poder dos mantras transmitido na iniciação: Śrī-sampradāya, sistematizada por Rāmānuja; Rudra-sampradāya, sistematizada por Vallabha; Kumāra-sampradāya, sistematizada por Nimbārka; e Brahmā-sampradāya, sistematizada por Madhva (Padma Purāṇa, citado no Prameya-ratnavali 1.5-6 de Baladeva Vidyābhuṣana). É nessa última que se situa Śrī Caitanya Mahāprabhu e toda a linhagem do Vaiṣṇavismo gauḍīya, que passa por Rūpa Gosvāmī e chega aos contemporâneos como Prabhupāda.

Concluindo, podemos ver que a tradição vaiṣṇava gauḍīya considera o guru simultaneamente como um instrumento e uma teleologia (finalidade), isto é, um mistério, uma Graça, que torna o inacessível acessível.

Créditos da imagem: Acervo do autor